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Antes pleiteavam Anistia ampla geral e irrestrita - Agora é só para eles!!! |
José Nêumanne - O Estado de São Paulo
Já que o secretário de Direitos Humanos da Presidência da República, Paulo Vannuchi, está tão interessado em investigar a violação de direitos humanos pela ditadura militar que provocou uma crise interna no governo federal por propor a tal Comissão Nacional da Verdade, talvez fosse útil esclarecer algumas meias-verdades, que também são meias-mentiras, a respeito desse delicado assunto. A primeira delas é a motivação da iniciativa: conforme o proponente e seu patrono na Esplanada dos Ministérios, Tarso Genro, ministro da Justiça, não há intenção de ofender os militares nem de revogar a Lei da Anistia, que extinguiu os crimes políticos eventualmente cometidos na vigência do regime de exceção. A dificuldade para quem (como o autor destas linhas) não é fluente na algaravia ideológica de ambos é compreender como o dito cujo texto será blindado se ele vige desde 1979 e a proposta é revogar as leis que possam ter permitido tais violações entre 1964 e 1985.
"Criar a Comissão da Verdade é a favor das Forças Armadas,
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Dulce de Souza Maia Vanguarda Popular Revolucionária/VPR - Assalto ao Hospital Militar de São Paulo - atentado ao QG do II Exército ( 1 morto e 5 feri- dos) - assssinato do Cap. Chandler -EEUU |
É difícil crer que o secretário de Direitos Humanos ignore um tema de sua pasta a esse ponto. Pois qualquer aluno iniciante de algum cursinho mambembe de História recente do Brasil sabe muito bem que os agentes da repressão nos órgãos encarregados de combater a guerrilha não eram loucos solitários e isolados das instituições militares. João Cândido, assim como o capitão Carlos Lamarca, que fugiu do quartel de Quitaúna, na Grande São Paulo, com um caminhão de armamentos para liderar um grupelho guerrilheiro, é que pode ser considerado à margem dos quadros fardados. A repressão à esquerda armada - e todas as suas consequências - foi uma decisão de governo, cumprida pelas Forças Armadas, e desconhecer essa verdade histórica só pode resultar de crassa ignorância ou asquerosa má-fé. Portanto, qualquer tentativa de investigar violações de direitos humanos no regime de exceção sob comando militar mexerá, sim, com vespeiros em muro de quartel. Se isso é necessário ou não, são outros 500 cruzeiros. Mas não nos venham os atuais detentores do poder com tantos borzeguins ao leito.
A reabertura dessas chagas neste momento pode até contemplar o princípio legal vigente em vários países e recentemente adotado no Brasil de que a tortura é um crime que nunca prescreve. A medida legal será até salutar se a denúncia dos torturadores impedir que tais práticas continuem sendo cometidas em delegacias de polícia contra presos comuns ainda hoje. Mas urge considerar outras questões, que vão além dessa meia-verdade, simplória apenas na aparência. Isso poderá suscitar um longo debate jurídico, histórico, político e ético. Pois a lei que torna a tortura um crime imprescritível é posterior à anistia, sem a qual não teria havido o arranjo institucional que permitiu a volta da democracia clássica e a ascensão da esquerda desarmada ao poder.
Só isso poderá encerrar o debate, que talvez nem devesse ter sido iniciado. Mas ainda há mais a considerar, já que a palavra verdade está sendo utilizada de maneira, digamos, leve na denominação da iniciativa, que mais parece retaliação ou um gesto comparável a urinar no poste para marcar posição. As vítimas da ditadura assenhorearam-se do poder e agora fazem questão de mostrar quem manda neste Brasil de uma democracia pouco solidificada, onde ainda vige uma norma consensual, não inscrita na tradição jurídica, mas perfeitamente adequada aos hábitos e costumes, segundo a qual "manda quem pode, quem tem juízo obedece".
Convicta de que a História é escrita por vencedores, em detrimento dos vencidos, o que justificaria até os atos bestiais de Hitler e Mussolini, por exemplo, a esquerda quer reescrever a ata deste nosso tempo porque perdeu a guerra suja, mas subiu ao poder. Ainda que não tenha êxito no Parlamento, pois, ao que parece, senadores e deputados não estão muito dispostos a remexer no lixo dos porões da ditadura, os patronos da Comissão Nacional da Verdade já conseguiram algumas conquistas. A primeira delas foi expor os atuais comandantes militares à humilhação pública de serem forçados a devolver seus cargos ao presidente. A segunda será refinar outro combustível para anabolizar a crescente popularidade de Lula, que poderá ostentar a láurea de "vingador dos torturados".
E a maior de todas será elevar ao panteão dos heróis da democracia militantes que não arriscavam a pele pela liberdade, mas por sua forma favorita de tirania. Se conseguir ungir tal mentira como verdade, a proposta terá prestado um imenso desserviço à história e à democracia.
José Nêumanne, jornalista e escritor, é editorialista do Jornal da Tarde
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